O que é um Embromance?

Mais do que a simples análise e interpretação de suas palavras, o leitor, ao ler um texto, aprecia a sua métrica e, ao meu ver, principalmente, a sua sonoridade.
Toda palavra, além de um significado, possui uma forma e fonética, que auxilia a transmitir o grau de austeridade ou informalidade do que se quer comunicar.
Partindo-se destes pressupostos, os Embromances buscam exaltar a forma e a sonoridade em suas expressões, em detrimento completo de sua lógica ou real significado.
Cabe a eles embalar o leitor em uma atmosfera superficial de eruditismo e exaltação emotiva, sem que contudo coliguem-se as informações contidas em cada real significado das frases.
Menos vale o "ser" do que o "parecer ser".
Mais vale o símbolo do que o significado.
Não há como entendê-los sem experimentá-los.
Embarquem nesta experiência e apreciem.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Antropofagia

Acordou naquele dia com a estranha sensação de um vazio no estômago. Uma dor sofrida e inexplicável, sorrateiramente, causava-lhe inapetência. Levantou-se, procurou com os pés os chinelos e arrastou-se até a pia, com um gosto amargo em sua boca. Poderia buscar motivos em noites de trabalho mal dormidas, jantares mal digeridos ou amores sem sentido, mas nada justificaria o que se passava naquela manhã. Um sentimento rude, seco, putrefado... como se todos os cadáveres do mundo regurgitassem em sua boca e a selassem com óleo e ervas amargas. Olhando seu rosto inchado no espelho, viu passarem-se anos e perder-se a juventude como a água que escorria da torneira, por entre seus tortos dedos. Traços fundos e marcantes, olheiras profundas e escuras, os cabelos ralos e umedecidos pela oleosidade de sua pele. Tentou vomitar e...nada. O estranho gosto não saía nem mesmo após a higiene bucal. Um gargarejo talvez resolvesse. Nada. Enquanto se dirigia à porta, em busca do matutino, sentiu que suas juntas se moviam de forma morosa e inconsistente. Era um dia nublado, cinza escuro, e algumas gotas no vidro da janela indicavam que chovera durante a noite. Abriu a porta, e, curvando-se para apanhar o seu jornal, sentiu um ímpeto repentino de levá-lo à boca e prová-lo. Balançou a cabeça para ambos os lados, esfregou os olhos e abaixou-se novamente. A mesma vontade. A presença de um vizinho a abrir apressadamente a porta pegou-o desprevinido e fez com que parasse, encurvado, naquela posição. - Bom dia, algum problema? – perguntou-lhe o vizinho. – Exercitando a coluna. – respondeu sem muita convicção. – Foi assim que Napoleão perdeu a guerra... – não resistiu o vizinho, com uma intimidade incondizente com o pouco contato que tiveram durante anos. E continuou a rir pelos corredores, ecoando forte pela escada de serviço. Tentou se reerguer, mas sua coluna travara. Dobrou os joelhos e, pegando o jornal com a boca, fechou a porta e engatinhou até o sofá da sala. O gosto da tinta, ainda fresca, impressa no papel-jornal, era, para ele, agora, como um néctar dos deuses. Papel e tinta eram leite e mel, oriundos da cachoeira límpida de alguma gráfica. Foi mordendo com força os classificados, devorou um suplemento, o cadernos de esportes, até chegar à primeira página. Esta , impressa em tinta colorida, era como uma sobremesa vistosa aos olhos e ao paladar. A diarista entrou no momento em que, de olhos revirados, saboreava as manchetes, com o prazer inigualável de um gourmet degustando fina iguaria. – O senhor está bem, seu Menezes? - Aquela voz, grave e rouca, o fez despertar de seu transe gustativo e o trouxe de volta ao mundo real, aonde se lia em negrito: “GREVE DE ÔNIBUS”. – Cheguei aqui de carona com uma colega. Os ônibus tão tudo parado. – Tudo bem, Marinalva, que horas são? – Vinte para as duas. O Senhor não vai trabalhar? – Que dia era hoje, em que trabalhava, coisas que foram voltando aos poucos à sua memória recém-refeita de um bizarro, porém delicioso, café-da-manhã. – O senhor já comeu alguma coisa? Quer que eu passe um café? Fez que não com a cabeça e, ao vê-la sumir na cozinha, terminou de comer as manchetes e saiu. Chegaria tarde na redação, mas já almoçado.

Tia Rufina

Colocou as mãos na cabeça e parou , por alguns instantes. O que acabara de ver lhe proporcionara um momento de profunda reflexão. Tirando seus óculos, guardou-os no bolso, a fim de ver com os próprios olhos a cena que, por muito tempo, temeu encontrar. Logo pela manhã, lhe previra o rabino – “Às vezes, no mundo, a justiça se paga!” – triste presságio... Não guardava superstições, mas temia confrontá-las. “Ninguém está a salvo do que a vida tece e fia”, dizia Tia Rufina, enquanto teava. Voltavam em sua mente rostos e palavras, ditos e preditos, numa procissão de imagens que se moviam velozmente, formando um caleidoscópio confuso e arrebatador. Nunca, pensava, pudera colher de forma tão abrupta os frutos que plantara em juventude, mesmo os mais esterçados. E com um gesto de extrema frieza, ao olhar para a frente, diante de tal desgraça, retirou seu chapéu, de abas amassadas, e pôs-se a cantar - porque não? – canções antigas que Tia Rufina lhe ensinara. Foi-lhe seguindo um e mais outro, até que , em coro egrégio, uma pequena multidão se formara. E era triste, vê-los, coligados, enaltecerem um tempo em que juntos se encontravam, livres e isentos, de flores e mortalhas. E naquele instante, pela angústia ermanados, surgiu do vento a mais rara sintonia. Como um relâmpago que cala a noite fria, a tosca porta bateu, desgovernada. Calou-se o canto e, na sala emudecida, presenciou-se a mais doce presença viva do que foram os áureos tempos de cada vida, ali confinada. Sem notar, surgiram lágrimas nos olhos, de quem, a tempos, não sorria e não chorava. De um fato torpe restauraram-se amizades, surgiram laços onde as rusgas imperaram. Temeu-se um dia ter-se ao outro odiado e ninguém mesmo ali antes se conhecia. Vidas se uniram, histórias se trocaram. E todos saíram dali mais humanos e humanitários. “Em todo chão se encontram agulhas” – dizia Tia Rufina. E, mais do que nunca, isto agora o consolava.

domingo, 29 de agosto de 2010

Sacrofício

"É sobre isso que gostaríamos de falar com o Senhor", interviu o romeiro. Fora chamado ali às pressas, sem que tivesse ao menos a chance de se inteirar de sua alcunha. Haviam muitos afazeres nesta época do ano e não se dava conta das pequenas agruras que sua atividade cotidiana enxertava. Fora , outrora repreendido publicamente acerca de seus hábitos, mas deixara claro, decerto, a insolência dos transeuntes no trato de suas amenidades. Odiava o destempero e a rudez com que alguns empregados expunham suas qualificações. Não bastasse o silêncio inerente ao zelo de seus atos, teria agora o temor ao novo e mais antigo opressor. Ríspido e enfático, sempre disposto ao martírio de suas monções. Saiu de sua sala com o olhar perdido de quem fita o óbvio e se desfalece. Era preciso recomeçar sem mesuras o incólume torpor. Pensar naquilo lhe causava náuseas e um rato a correr pelos corredores novamente lhe indispôs. Retirou do bolso da casaca um pequeno grilo e decepando-lhe as patas se sentou e comeu. E de novo outro grilo, até escurecer. Guardou suas espátulas no armário e aproximou-se dos outros para o cerão. A cabeça entre os ombros, o peito inflamado e um rouco pigarro ecoaram no corredor. Os ruídos mudos das patas do rato guinchavam ao lado causando-lhe horror. Regurgitou. Era mais uma noite fria entre o balde e o esfregão.

domingo, 25 de abril de 2010

Quarentena

Saiu para trabalhar e resolveu passar um dia livre de tudo que o algemasse. Sentou em uma loja de sucos e pediu uma vitamina de mamão com abacate. Telefonou para o supervisor e avisou que estava passando malíssimo e, falseando a voz, tossiu e pigarreou o máximo possível. Ficaria de cama pelo menos uns três dias. E era contagioso. Um dia inteiro pela frente e nenhuma obrigação em casa ou no trabalho. Estacionou o carro na orla e foi passeando, sem camisa, pelo calçadão. Tirou o sapato e as meias e, melhor ainda, resolveu passear pela areia fofa, sentindo nos pés as ondas do mar. O celular tocou e era um número confidencial. Guardou o aparelho no bolso e botou no modo silencioso. Ninguém era mais importante do que ele, naquela manhã. Sentou-se na areia, observou os corpos dourados das moças caminhando para o mar, bebeu um mate gelado, fechou os olhos e arrumando a camisa com jeito, improvisou um travesseiro e dormiu. Um sono de anjo, como a muitos anos não alcançara. Acordou, horas depois, com um côco, batendo em seus pés, com a subida da maré. Eram três da tarde. Tirou o relógio do pulso e, com ele, o seu último mecanismo de escravidão. Ao levantar-se, vagarosamente, escutou uma voz feminina - Genaro! - não era com ele. A voz insistiu mais forte - Genaro!!! Ele olhou e viu uma senhora um tanto esbelta com um maiô frisado e um chapéu de palha. Olhou para ela meio sem jeito e, quando ia explicar o equívoco, recebeu um beijo apaixonado, daqueles que só vira nas fitas de cinema. - Há quanto tempo, Genaro! - Seu nome era Rubens, mas tudo bem. Ela lhe explicou que jamais entendera sua partida e que todos na sua cidade juravam que um dia se reencontrariam e reatariam novamente. Por noites planejara minuciosamente os detalhes de seu casamento. Encontrá-lo novamente agora era quase um milagre. Ainda guardava a foto dos dois atrás da capela, abraçados a frei Onofre. E lhe mostrou , resfolegante e orgulhosa, a fotografia, esmaecida e amarelada pelo tempo. -Vamos? - perguntou-lhe. Ele não disse nada. E de mãos dadas correram na areia, o vento salgado no rosto e o passado inteiro pela frente. Num bar, à beira da praia, ela lhe relembrava de tudo que se passou desde a sua inexplicável partida. E de como ela sofrera a sua ausência e compensara sua saudade fabricando roupas que vendia para a cidade grande. Era hoje riquíssima, mas faltava-lhe ainda um pedaço em seu coração partido. Tentado a lhe explicar o engano, sua voz era sempre calada por um beijo ou uma crise de choro. Pensou em explicar a ela que tinha a vida toda feita e milhares de compromissos. Ao fitá-la, porém, diretamente nos olhos encharcados, lembrou que nunca construíra nada e que tudo o que mais queria era uma mudança de vida. Apertando, por fim, os seus finos braços, jurou o eterno amor que lhe negara na juventude. De lá, foram à rodoviária e, a pedido dele, compraram um bilhete para o desconhecido, um lugar onde nunca tivessem estado. Casaram-se e ele nunca mais voltou para o seu trabalho. O supervisor colocou todos de quarentena, para salvar a empresa de sua doença gravíssima. Deu no noticiário que , desesperado, se jogara no mar. E Genaro sorriu, ao lado de Ruth, pedindo mais suco antes do jantar.

domingo, 13 de setembro de 2009

Doce Sufrágio

Escrevia os informes de trânsito do jornal. Era um trabalho, chato, metódico,mas trazia a importância de guiar a vida de milhares de pessoas em seus autos. Considerava , mais que um privilégio, uma vocação, que passava por gerações de arautos, desde a chegada do primeiro automóvel em sua cidade. Lembrava disso com se fosse hoje.
" Eu brincava no chão de areia do quintal de Malaquias , quando meu peão se enroscou em uma folha seca de amendoeira. O vento que a fez girar vinha do deslocamento produzido por aquela estranha máquina, que cortava os ares reluzindo o reflexo do céu árido daquela estação. Emperdigado em um terno de linho branco, me olhava, com ar senhoril, impecável senhor de cabelos grudados à cabeça e expressão de um honorável e sorrateiro desdém. Corri por uns metros acompanhando sua passagem até que se perdesse de vista por trás dos portões de cedro. Ao se fecharem pelas mãos de outrem, me iluminaram a infância sobre o doce porvir de uma nova era. Já sabia o que queria pelos próximos longos anos. Desde então, tentei cercar-me dessas máquinas o quanto pude e não houve dia em que não desejasse possuí-las até o verão de 47, quando,já crescido, ousei dirigir meu primeiro ford, emprestado, para conduzir uma formosa senhora ao mercado, próximo à catedral. Nunca mais as larguei, paixão e senhora, que por tantos anos me acompanharam, até não mais reluzirem. Vendo hoje os anos sem fim que nos separaram de um doce sufrágio , me encontro perdido entre tantas memórias, de planos e máquinas que rondam meus olhos. Divido-me ausente entre canos e abraços, seus beijos e amassos e o torque a roncar. O trânsito pára e a alma evapora, sou um morto de outrora em caixão singular. A caravana passa incólume e os braços que me levam caminham sem parar. Como o brilho de um ford, preto e brilhante, avista-se enfim meu corpo a baixar. Que a terra que um dia levantou-se trazendo aquela folha com um auto a passar, cubra-me agora com os planos e sonhos, que junto a Helena não pude encontrar."

domingo, 19 de julho de 2009

Jornada

Havia passado por muitas angústias nos últimos dias. O ritmo da cidade grande, para onde migrara em busca de movimento era , para ele, um tanto frenético e ensurdecedor. Costumava sentir agora contínuas saudades dos tempos de outrora, das tardes ensolaradas, do vento seco e cortante e do pouco que ainda lembrava de sua juventude. A vida foi-lhe enredando em contínuos turnos de exaustivas tarefas mal-remuneradas. Sobreviver ao escárnio do retorno era agora deveras mais importante do que as constantes humilhações a que se submetera. Cada dia e cada noite eram rasgados sem piedade em sua folha de calendário. “Por hoje e mais um tempo, eu vivi”, pensava resignado. Aos domingos, de sua janela, que já não mais abria, assistia entre o vidro empoeirado, resquícios de vidas que passavam em transeuntes agitados. Uma criança a correr apressada desembrulhando um bolo que a mãe lhe comprara, cães a farejar comida no crepúsculo de vidas confinadas. Começar de novo o dia seguinte, o despertar quase ainda no clarear da alvorada. Coletivos lotados, a chuva insistindo em molhar as barras da calça puída e desbotada. Pegou no armário o bilhete escrito por ela, agora um tanto empoeirado. Preservadas em papel-de-seda, ressurgiam, agora, as últimas palavras que ela lhe deixara. “Se voltar, não me esqueças, sua doce Judite.” E pude imaginá-la a correr para o estoque do armarinho, buscando artefatos de costura para as senhoras que, no balcão lotado, resfolegavam. Naqueles doces lábios, um dia conheci de perto um mundo mais vivo e menos solitário. O cabelo arrumado com fitas e as saias de xita que sua mãe lhe costurava. Com vincos, transpassada e com flores bordadas. O adeus na estação, as mãos apertadas, o choro contido e a voz embargada. Por onde será que ela hoje andava? Quinze anos se passaram como um lobo solitário que devora as horas e as datas no meu calendário.Nesses anos tortos, mais que perdas e desencantos , meu sopro de vida esvaiu-se em minguados trocados. A japona posta, sigo meu itinerário. O vento lá fora era hoje insuportável. As grossas gotas de chuva tocam minha face como um bálsamo dos beijos de Judite, hoje ressecados.Em minha boca semi-aberta, trazem de volta o frescor dos momentos que vivi naquela chácara. Passo assobiando por vultos que me olham com olhar assustado.Como um louco encharcado, insisto em meus passos trôpegos, a seguir desgovernados. E num gesto isolado, ao perder o equilíbrio, seguro firme dois braços, que surgem, protegendo-se, amedrontados. Vejo um rosto, entreolhar-me sofrido , sem proferir nenhum brado. Tasco-lhe um beijo, tosco, comprimido, em lábios outrora hesitantes e agora desesperados. Era o padeiro, ensopado e enfurecido, que persegue-me então, descontrolado. Meu coração bate forte, o pulmão ofegante, mas a alma, refeita do beijo, curada. Nem tudo nesta cidade são flores, mas um pouco de amparo adoça a jornada.

domingo, 28 de junho de 2009

Cavalheiro

Nunca o haviam visto por ali. Balançou seu guarda-chuvas vistoso e, com olhar entreaberto, vislumbrou seu objetivo. Era uma rigorosa manhã de outono, com as copas das árvores coalhadas de chuva. Não fosse por um certo ar de austeridade e passaria desapercebido na multidão. Mas foi caminhando, passo a passo, obstinadamente, até encontrar-se sozinho, em outro cômodo, do outro lado da sala. Dava para ouvi-lo, respirando com dificuldade e rompendo o silêncio, vez por outra, com um pigarreado incessante e estrondoso. -Não é necessário preencher seu nome- advertiu-lhe o meirinho, com um sorriso diplomático. Subiu pela escada, que conduzia ao mezzanino e bateu insistentemente na porta, aonde se lia “entre sem bater”. Retirou, sem hesitar, um maço do bolso e acendeu seu cigarro, molhado pela chuva e enrugado. Nunca ninguém jamais batera naquela porta, muito menos com tamanha indignação. E eis, por fim, que ela se abriu. E fez-se entrar o cavalheiro, sem cerimônia. Durante a maior parte do tempo o que pode-se ouvir foram, somente, seus pigarros - vigorosos e intermitentes. Talvez por isso não tenha havido maior assombro, ao o vermos sair pela porta, sem , ao menos, fechá-la. Um sopro forte de vento adentrou a sala, como um sutil presságio de que algo de grave estava por acontecer. Com as mãos umedecidas e crispadas de fumo, cruzou como um raio o arco que conduzia ao jardim de inverno. No topo de sua cabeça, uma aresta de sol reluzia, platinada, na testa franzida, com os traços marcados, de frio e de dor. Notei-lhe tristeza, nos olhos cansados e os cabelos grisalhos, que o tempo não omitia. Ao fitar-lhe, virava-me os olhos e, de tanto esquivar-se, tombou sobre um vaso. O barulho, estridente, ecoou pela sala, despertando os presentes de um leve torpor. Em um gesto áspero, ergueu-se estupefato, tentando esconder seu orgulho ferido. E, estando, porfim, prontamente refeito, aproximando-se de uma senhora, desferiu-lhe um golpe, que a fez projetar-se. – Basta de escárnio!- bradou, esbravejante, sem contudo demonstrar remorso ou hesitação. Um ruidoso pigarro, sonoro e vibrante, pois fim ao rompante e devolveu-nos a calma. Ergueu-se a senhora e, não fosse o inchaço, por nada se diria ter sido esmurrada. – É sempre bom, de manhã, um exercício - e voltou, sem ressalvas ao mesmo lugar. –Ainda aqui? – arguiu-lhe o meirinho, e ,num rápido ensejo, cuspiu-lhe na face. Era o gesto pior que o de outrora e causava-lhe asco, maior que sua dor. Não haviam pessoas na fila, mas, mesmo sem forças, pôde se levantar. E ninguém duvidou que o faria, visto que o ódio em seu rosto aos poucos se estampava. O relógio enfim soou, anunciando o fim da jornada de trabalho. E, em meio aos passos,de corpos esfuziantes, um gesto desafinado calou a sinfonia. Com a arma em punho, ao esmo atirando, nos corpos tombando uma voz se escutava – Eu sou de um tempo em que havia respeito!- e, sem medo ou pudor, a senhora mirava. No mármore vermelho, tristes sombras repousavam. Cidadãos de um tempo em que velhas não atiravam.

Anauê, vovó

-Tio Barmstorng! Tio Barmstrong! - Era vivo o menino. E não podia deixar de ser. Sua mãe fora costureira durante a Segunda Guerra. Não contávamos, contudo, com tão inesperada zoeira. Era cedo, e, nestes dias, o inverno era rigoroso. Capaz de gelar os ossos até mesmo dos cavalos! Era, então, surpreendente ver Huck já fora da cama. – A vovó comeu meu bolo? – perguntava, sem pensar. Pobre alma de criança, sempre inventando o que falar... E o silêncio foi mantido, mesmo que involuntário. O menino voltou para o quarto e a cozinha encheu-se de vida, como convinha à hora do almoço. É nesta hora, quando comem os servos, que mais fartura se encontra nas vasilhas e pratos. –Como comem esses meninos! - foram suas últimas palavras. E tombou sobre a sopa, amarelo e fatigado. Já fugia-se o tempo em que o mesmo era visto, trabalhando nos campos ou servindo no roçado. E foi, talvez por isso, que não viu-se, em ninguém, sombra de espanto ou perplexidade. –Junte-se aos ratos! – foi o que disse a nobre senhora, que adentrava. E foi a gota d’água. Nunca se vira tamanho destempero ou tamanha intemperança, vindo daquela casa. Era cedo, e, como eu já disse, o frio era insuportável. Tio Ralph trouxe a coberta, mas o desconforto já se instalara. O menino retorna insistindo – Foi a vovó quem comeu? – novo silêncio. Como explicar-lhe que sua vó falecera a trinta anos atrás? Ele não podia aceitar que ela lhe deixara, mesmo antes de conhecê-lo. Era triste ver o menino inventando jogos, em que a avó sempre participava. Rudemente, Tio Ralph mandou que ele se calasse. Tão descortezmente que a própria cozinheira não pôde suportar. – Sangrem o porco!- gritou, descontrolada. E partiu em sua direção, com um objeto afiado. O menino, como por instinto, saltou diante da faca. Nunca haviam-no visto em defesa de ninguém. Muito menos Tio Ralph, um senhor esclerosado que jamais se recuperara de suas perdas, apostando em cavalos. Mas permaneceu imóvel, o corpo perfilado diante do tio. A luz que entrava da janela, com seus tênues raios de sol empoeirados, davam a ele uma coloração luminosa, como um anjo justiceiro e ameaçador. O som da faca, caindo no chão gelado da cozinha, cortou o clímax que se instaurara diante de todos e serviu de aviso a uma possível nova ameaça. Ninguém, nem o mais rebelde dos empregados, ousaria levantar as mão contra Huck. O menino era uma espécie de guardião-mirim da fazenda, conhecendo dela todos os seus segredos. Já o haviam visto, mesmo, caminhando sobre o lago, numa noite de tempestade. – Anauê, Vovó! – ouviram-no gritar. E então, como quem pega um brinquedo, pegou a faca no chão e devolveu-a à cozinheira. As lágrimas escorriam, mas Tio Ralph retirou-se em silêncio, e jamais comentou o fato.

Armageddon

Eu estava lá, e sentia...Não que não pudesse alcança-los, mas...eu sentia. Nada poderia me deter. E então veio a peste. E levou a todos nós. E veio o medo, a fome e a desnutrição. Já não era mais o mesmo e temia pelos meus familiares. Um pequeno grupo se foi...e mais outro. Cadáveres se empilhavam sobre os escombros. Fumaça, angústia, escuridão. Vítimas da escrutínia humana e da sofreguidão. Um galho seco retorcido se achegou a nós e nele nos agarramos. Uma nova enxurrada levou tantos que não poderia contar. Respirei e pensei. “Nada no mundo vale o preço de uma ardósia”. Meus pés gelaram, meu pulso caiu junto à pressão sanguínea. Por pouco não fora arrebatado de vez para o caldeirão do inferno. Emergi cuspindo sangue e ouvindo vozes, bem ao longe. Entre elas a de um menino.Cem toneladas de cal caíram bem diante de meus olhos. Um carvalho em brasas quedou firme, esfumaçando tudo e nos cegando temporariamente, com seu ardor. – “Voluntários, corpos logo adiante!” Tentei gritar para que me achassem mas o gosto rouco da fumaça entranhara em meus pulmões. Ergui um arbusto e o agitei, mas o vento forte era, a este ponto, ensurdecedor. Uma nova cortina de fumaça e fogo cortou-me subitamente as narinas e fui lançado por centenas de metros, com o corpo girando tal qual uma bola de bilhar. Não senti a queda, somente o silêncio. O vazio e o nada. Era escuro e frio e eu não podia me mover. Como num tenebroso pesadelo, vozes ininteligíveis se ouviam e ecoavam, por toda parte. De repente passos. Que surdos e enlameados se aproximavam. Procurei gritar, mas não me ouvi. E vi uma luz intensa virar-se para os meus olhos. Cego por instantes fui trazido à vida por uma dor terrível, carcumendo todos os meus ossos. Reconhecia aquele ambulatório. Era a base naval de Brifterdale, Novo México. Vozes familiares fui distinguindo entre vultos que começavam a ganhar forma, em minha visão turva e desfocada. “Foi apenas um susto”- ouvi Brad dizer. Meus filhos correram em minha direção e o capelão segurou-os pela lapela. “Seu pai precisa descansar, anjinhos. Vamos deixá-lo sozinho”. Tentei gritar que ficassem, mas não me ouviram. Tudo o que menos queria era novamente me ver sozinho. Uma nova cortina de fumaça se formou e em segundos tudo foi demolido. Tive sorte de estar atado, pois por pouco encontraram meu corpo imóvel, a trinta metros de uma cratera vulcânica.

Monastério

Nunca é tarde demais para se aprender a sonhar”, disse o bispo. E logo em seguida serviram as bolachas. Os copos de guaraná, pequenos , eram os mesmos de minha infância. Adornados com furos de flores e desenhos de beija-flor. O cheiro de umidade, guardado nos hábitos dos monges me era, a este ponto, familiar. De sobremesa, o mesmo bolo de nata. Em caixas redondas de metal, abriam-se biscoitos Maria, sabe-se lá a quanto tempo guardados. Um menino despontou da cozinha e a madre encheu suas mãos de biscoito. Deve ter corrido para o pátio, pois notei sua voz gritando de encontro a outros garotos.”Alguém quer café?” Esta pergunta me despertou novamente para a sala de jantar do convento. Já era tarde e, pouco a pouco, alguns se recolhiam. No átrio principal uma sineta tocou e aquele grupo se desfez como que por encanto. Em instantes toda a mesa se encontrava desfeita e todos os potes guardados, fechados, em armários de carvalho. Vi-me sozinho e confuso, em uma sala escura, iluminada apenas pela luz de um oratório. No fim do corredor, uma estátua enorme de Santo Ambrósio. Fui passando pelas portas fechadas até me ver frente a frente com o santo. Seu tamanho natural me permitia fitar-lhe diretamente os olhos, que, de vidro, refletiam meu cansaço e face abatida. Mergulhei em seu olhar e senti-me extremamente preenchido por uma paz angelical.Ouvia coros de anjos e saboreava néctar e mel. Pude ver o condado de cima, em um vôo longo e suave. Tal qual o vinho que provara na adega monacal.

A baronesa

Estive em diversos países, Loretta, e nunca vi tamanha indiscrição”. Era de surpreender que tal atitude viesse de cavalheiro tão distinto, tal qual Mr. Husebutt. Dois anos se passaram e permaneciam frescas em sua memória a cor gélida de seu casaco e a rudez de suas intenções. Nunca supusera encontrar em um armarinho pessoa tão descortez e de verve tão inadequada.quanto aquele homem. Era moça de fino trato, acostumada ao linho e à ama-seca. Não toleraria jamais passar-se por meeira ou cousa parecida. Tal descompostura fora inapropriada, inoportuna e jamais presenciada antes por nenhum membro de sua família. “Fosse vivo o Tio Rudolf! O que não haveria de fazer?!” Sim. Eram esses outros tempos... Desde a venda da fazenda em Mont Vernon, jamais aquela dinastia usufruíra da mesma velha opulência. Um doce e amálgamo crepúsculo adornava suas vidas e destinos. Gestos trêmulos, olhares e gemidos, eram sinais ríspidos de um irremediável vazio. Eram muitos os móveis a empoeirar, mas fiéis criados, de mãos cansadas, resistiam bravos , sem arrefecer. “É preciso resgatar o bálsamo que cobria esses afazeres”. Ao ouvirmos a voz firme de Fraulin Kosova, nos dávamos conta de que os ideais da falecida baronesa permaneciam ainda presentes na alma combalida da velha fazenda. E era isso que nos fortalecia em momentos como esse. Isto e mais uma boa e quente dose de chá.

Romance

Cansado de mais um dia de trabalho, ele chegava em casa. Sozinho desde a separação, pega uma garrafa de água e caminha para a televisão. A velha cadeira de sempre havia de confortá-lo enquanto assistia ao telejornal. O telefone toca e ele, sem perceber, derrama o líquido, molhando os grossos volumes de enciclopédia que, por mais um dia ,não conseguira vender. Tentado a não atender, o faz pela aguda insistência do toque estridente. Ao reconhecer a voz feminina, hesita e desliga. Para completar seu dia, agora aquela ligação. Pega uma toalha e começa a secar as páginas quando novo toque o desperta. -Meu Deus, não se pode mais cuidar da própria vida sem que algum incidente se perpetue! Alô!!- ele atende com o pior dos humores. A mesma voz feminina mal começa a balbuciar e ele torna a colocar o fone no gancho. Melhor seria naquele momento evitar qualquer aproximação que pudesse comprometê-lo. Tinha o emprego, as crianças, não valia a pena pôr tudo a perder por uma aventura. Dirige-se ao quarto, pega uma toalha meio úmida, pendurada na maçaneta e liga o chuveiro. A água caindo sobre sua cabeça esfria o corpo e lhe traz à mente o cansaço de mais um dia rotineiro de trabalho. Que vida sem sentido seria aquela que ele não via nos sorrisos instigantes dos anúncios de revistas. Seria apenas impressão ou ninguém no mundo tinha vida tão chata e sem amigos... Pensou que deveria ter atendido o telefone. Desliga o chuveiro e, como por impulso, pega uma roupa qualquer com a qual possa vestir-se. Pilhas de camisas amassadas e sujas se amontoam diante de seus olhos. Com ela teria sido diferente... Aromas perfumados e camisas engomadas, separadas por cor. O som das crianças correndo para a sala quando ele chegava e o abraço caloroso e amável dos filhos. “Tem coisas que a vida nos rouba e que nem um joalheiro nos pode forjar”. Essa frase de mamãe ressoava como vingança por anos de perdidos bons conselhos. “Se ouvisses sua mãe, em muito a sua vida mudaria”. Era um desfile de rostos,de frases,de tios e tias, a grasnar arrogantes contra um jovem solteiro e sem rumo. O interfone toca e, ainda molhado, toalha amarrada, puxa-o do gancho. “Mathias!” Meu Deus, ela veio até aqui! “Pois não?”- respondi. “O Mathias, por favor?”-insistiu. “É no prédio ao lado! Segundo andar!”. Era preciso ganhar tempo. “Mas o prédio ao lado é um comércio!”-diz a voz. “O outro lado, minha filha!” –respondi impaciente querendo pôr fim à questão. Diante do silêncio demorado, coloquei o fone no gancho. Dirigi-me à janela e pude vê-la correr até a esquina e dobrá-la, à procura do próximo prédio.
Anoitece e, já de pijamas, algo me desperta a mente. Do outro lado do prédio havia uma casa, há tempos abandonada, após a morte de uma criança no segundo andar. Visto o sobretudo, calço os sapatos e corro escada abaixo, resfolegante, em busca do inevitável. As luzes dos carros e a sirene da polícia que há pouco fechara a rua deu o tom da desgraça. Doze facadas. Uma doce mulher, com um cesto aonde embrulhara meia dúzia de pães frescos, fôra surpreendida por um triste destino. O leiteiro que passava no local, apenas pôde ouvir , em voz abafada, suas últimas palavras, que estampariam as manchetes de jornal: “Por um lanche, meu amor, por um lanche...” E o crânio afundou no patê.

Crepúsculo

Chegou em casa cansado, naquele dia, e tomou uma resolução. Iria se aposentar ali mesmo. Não havia nada que não tivesse visto ou ouvido em todos os seus anos de trabalho. “Devemos saber a hora de parar enquanto nos resta ainda um pouco de dignidade”. Não seria tão insólito assim, não tivesse ele seus trinta e seis anos, ainda incompletos. Pegou uma jaqueta antiga, vestiu um pullover, agasalhou-se bem, sentou-se em sua velha poltrona e ali ficou. Impávido, ao assistir o noticiário. Desligou a tv e deitou-se inesperadamente cedo, pois não julgou ser mais hora de se permanecer acordado. E para espanto de todos os que o conheciam, na família e no trabalho, levou a idéia a sério e adiante. Comprou um par de luvas de lã e um cachecol. Selou todas as suas janelas de casa, como quem sela um túmulo, prestes a ser embalsamado. E com cortinas grossas, um tanto bolorentas, retirou a claridade de seus cômodos, iluminados agora, apenas por uma luz fraca e amarelada. Vendeu a tv e passou a usar um antigo rádio, que fôra de seu tio Ernesto. Lhe faziam companhia uma caneca quente,“um bom livro” e umas palavras cruzadas.E para aqueles que ainda ousavam tentar removê-lo de tal investidura, tombava-os um a um com argumentos irrefutáveis. “É melhor partir quando tem-se ainda os amigos vivos, do que vê-los esvaindo-se, um após o outro”, costumava dizer. E, passada a perplexidade inicial, foi convencendo um a um, até acomodar-se. Já era comum receber meias de lã no Natal, uma boina de feltro ou um suéter bordado. Em dias de tédio absoluto, quando poderia-se julgar que algo nele pudesse almejar uma volta à sua juventude, esmagava o seu ócio jogando damas na praça, desafiando rivais idosos sem piedade. Sem contar as vezes em que se rebelava, dando trabalho à acompanhante em remover toda a banana amassada, que esparramava nos chãos de taco ou, pior, no carpete mofado. Era o máximo de emoção ao qual se dispunha. E acomodou-se tanto àquela situação, que seu próprio físico convenceu-se. Teve reumatismo e artrose. E foi definhando, as pernas pesadas, o andar encurvado, mais tarde com o auxílio da inseparável bengala, que – dizia - lhe trazia charme e uma certa dignidade. No fim da vida, saía de casa apenas para a missa, aos domingos. Mas a saúde não aguentou. E um certo dia foi-se deste mundo, como um passarinho. Morreu dormindo, e, segundo seu geriatra, morreu de velhice. “Um dia todos partiremos. E, se Deus quiser, que nem ele”- confessou o doutor aos parentes, enxugando as lágrimas. Seu funeral foi belíssimo, cercado de amigos vivos e avôs e avós que lhe olhavam com uma gota de inveja. Afinal, jazia ali, com um leve sorriso nos lábios, alguém que soubera viver a sua vida até o fim. E com serenidade.