O que é um Embromance?

Mais do que a simples análise e interpretação de suas palavras, o leitor, ao ler um texto, aprecia a sua métrica e, ao meu ver, principalmente, a sua sonoridade.
Toda palavra, além de um significado, possui uma forma e fonética, que auxilia a transmitir o grau de austeridade ou informalidade do que se quer comunicar.
Partindo-se destes pressupostos, os Embromances buscam exaltar a forma e a sonoridade em suas expressões, em detrimento completo de sua lógica ou real significado.
Cabe a eles embalar o leitor em uma atmosfera superficial de eruditismo e exaltação emotiva, sem que contudo coliguem-se as informações contidas em cada real significado das frases.
Menos vale o "ser" do que o "parecer ser".
Mais vale o símbolo do que o significado.
Não há como entendê-los sem experimentá-los.
Embarquem nesta experiência e apreciem.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Antropofagia

Acordou naquele dia com a estranha sensação de um vazio no estômago. Uma dor sofrida e inexplicável, sorrateiramente, causava-lhe inapetência. Levantou-se, procurou com os pés os chinelos e arrastou-se até a pia, com um gosto amargo em sua boca. Poderia buscar motivos em noites de trabalho mal dormidas, jantares mal digeridos ou amores sem sentido, mas nada justificaria o que se passava naquela manhã. Um sentimento rude, seco, putrefado... como se todos os cadáveres do mundo regurgitassem em sua boca e a selassem com óleo e ervas amargas. Olhando seu rosto inchado no espelho, viu passarem-se anos e perder-se a juventude como a água que escorria da torneira, por entre seus tortos dedos. Traços fundos e marcantes, olheiras profundas e escuras, os cabelos ralos e umedecidos pela oleosidade de sua pele. Tentou vomitar e...nada. O estranho gosto não saía nem mesmo após a higiene bucal. Um gargarejo talvez resolvesse. Nada. Enquanto se dirigia à porta, em busca do matutino, sentiu que suas juntas se moviam de forma morosa e inconsistente. Era um dia nublado, cinza escuro, e algumas gotas no vidro da janela indicavam que chovera durante a noite. Abriu a porta, e, curvando-se para apanhar o seu jornal, sentiu um ímpeto repentino de levá-lo à boca e prová-lo. Balançou a cabeça para ambos os lados, esfregou os olhos e abaixou-se novamente. A mesma vontade. A presença de um vizinho a abrir apressadamente a porta pegou-o desprevinido e fez com que parasse, encurvado, naquela posição. - Bom dia, algum problema? – perguntou-lhe o vizinho. – Exercitando a coluna. – respondeu sem muita convicção. – Foi assim que Napoleão perdeu a guerra... – não resistiu o vizinho, com uma intimidade incondizente com o pouco contato que tiveram durante anos. E continuou a rir pelos corredores, ecoando forte pela escada de serviço. Tentou se reerguer, mas sua coluna travara. Dobrou os joelhos e, pegando o jornal com a boca, fechou a porta e engatinhou até o sofá da sala. O gosto da tinta, ainda fresca, impressa no papel-jornal, era, para ele, agora, como um néctar dos deuses. Papel e tinta eram leite e mel, oriundos da cachoeira límpida de alguma gráfica. Foi mordendo com força os classificados, devorou um suplemento, o cadernos de esportes, até chegar à primeira página. Esta , impressa em tinta colorida, era como uma sobremesa vistosa aos olhos e ao paladar. A diarista entrou no momento em que, de olhos revirados, saboreava as manchetes, com o prazer inigualável de um gourmet degustando fina iguaria. – O senhor está bem, seu Menezes? - Aquela voz, grave e rouca, o fez despertar de seu transe gustativo e o trouxe de volta ao mundo real, aonde se lia em negrito: “GREVE DE ÔNIBUS”. – Cheguei aqui de carona com uma colega. Os ônibus tão tudo parado. – Tudo bem, Marinalva, que horas são? – Vinte para as duas. O Senhor não vai trabalhar? – Que dia era hoje, em que trabalhava, coisas que foram voltando aos poucos à sua memória recém-refeita de um bizarro, porém delicioso, café-da-manhã. – O senhor já comeu alguma coisa? Quer que eu passe um café? Fez que não com a cabeça e, ao vê-la sumir na cozinha, terminou de comer as manchetes e saiu. Chegaria tarde na redação, mas já almoçado.

Tia Rufina

Colocou as mãos na cabeça e parou , por alguns instantes. O que acabara de ver lhe proporcionara um momento de profunda reflexão. Tirando seus óculos, guardou-os no bolso, a fim de ver com os próprios olhos a cena que, por muito tempo, temeu encontrar. Logo pela manhã, lhe previra o rabino – “Às vezes, no mundo, a justiça se paga!” – triste presságio... Não guardava superstições, mas temia confrontá-las. “Ninguém está a salvo do que a vida tece e fia”, dizia Tia Rufina, enquanto teava. Voltavam em sua mente rostos e palavras, ditos e preditos, numa procissão de imagens que se moviam velozmente, formando um caleidoscópio confuso e arrebatador. Nunca, pensava, pudera colher de forma tão abrupta os frutos que plantara em juventude, mesmo os mais esterçados. E com um gesto de extrema frieza, ao olhar para a frente, diante de tal desgraça, retirou seu chapéu, de abas amassadas, e pôs-se a cantar - porque não? – canções antigas que Tia Rufina lhe ensinara. Foi-lhe seguindo um e mais outro, até que , em coro egrégio, uma pequena multidão se formara. E era triste, vê-los, coligados, enaltecerem um tempo em que juntos se encontravam, livres e isentos, de flores e mortalhas. E naquele instante, pela angústia ermanados, surgiu do vento a mais rara sintonia. Como um relâmpago que cala a noite fria, a tosca porta bateu, desgovernada. Calou-se o canto e, na sala emudecida, presenciou-se a mais doce presença viva do que foram os áureos tempos de cada vida, ali confinada. Sem notar, surgiram lágrimas nos olhos, de quem, a tempos, não sorria e não chorava. De um fato torpe restauraram-se amizades, surgiram laços onde as rusgas imperaram. Temeu-se um dia ter-se ao outro odiado e ninguém mesmo ali antes se conhecia. Vidas se uniram, histórias se trocaram. E todos saíram dali mais humanos e humanitários. “Em todo chão se encontram agulhas” – dizia Tia Rufina. E, mais do que nunca, isto agora o consolava.